terça-feira, 24 de setembro de 2019

O ônibus da minha infância!

Quem escreveu este texto foi minha mãe maravilhosa (a verdadeira escritora rs). Com ele ela ganhou, em primeiro lugar, o prêmio de melhor crônica da Academia Brasileira de Letras do Estado de São Paulo. Ela arrasa e me deixou postá-lo aqui. Espero que curtam, é emocionante:

Por: Aparecida Maria dos Santos Vecchi

Na minha infância e até quase à adolescência já, o horário de verão era um forte aliado para as nossas brincadeiras, criações e nossos faz-de-conta, porque ele esticava o dia e encurtava a noite, tempo para dormir.
Éramos dez filhos, sete meninas e três meninos. É claro que os meninos não participavam desses delírios, pois já eram adultos e trabalhavam para ajudar no orçamento da casa. As duas mais velhas também, na época da “panha” de algodão, iam e ficavam no sítio dos meus tios até acabar a colheita e fora disso trabalhavam, prestando serviços domésticos às conhecidas da mamãe, para poderem comprar suas coisinhas.



Restava nós cinco para criar as mais deliciosas brincadeiras e aventuras por este mundo afora. Eu digo, por este mundo, porque tínhamos um ônibus. Azul claro. Velho.  Sem rodas e sem os vidros das janelas;  alguns assentos quebrados, outros quase inteiros, só rasgados e com os enchimentos saltando pelos buracos dos estofamentos; as ferragens cheias de ferrugem. Aquele bagageiro sobreposto onde os passageiros subiam por uma escada na traseira, para ali, colocarem suas bagagens. Ele era muito antigo, com um focinho comprido. Um ônibus de verdade. O ônibus que transportava nossa alegria. O assento do motorista estava lá, no lugar dele, imponente e a sua frente, a direção. Sucata que ficava no quintal do vizinho, proprietário de uma empresa de transportes de pessoas em Pereira Barreto, o Sr. João Galhardo.  Morríamos de vontade de entrar num daqueles outros de verdade que ainda funcionava e neles viajar com toda a família.  No “nosso”, eu digo nosso, porque nos sentíamos proprietárias dele enquanto o seu dono não estava por lá, nós viajávamos muito, atravessávamos o horizonte e o arco íris.  Ora ele se transformava em navio e cruzávamos mares e oceanos, ora em avião e nos levava a voar pelos céus, livres pela imensidão azul, cortando nuvens e chegávamos perto do sol de dia e da lua à noite. Viagens imaginárias, ricas, lindas e inesquecíveis.

Como era bom. Saíamos em viagem muito cedo, na nossa imaginação, porque na realidade, elas aconteciam no período da tarde, depois de ajudarmos nos afazeres da casa com a mamãe ... Imaginem minha mãe com doze pessoas na casa, para lavar as roupas, passar, cuidar de tudo e ainda lavar roupas para duas casas de família, era lavadeira. 
Éramos solidárias a ela, mesmo a contragosto e com muita pressa.
Eu gostava mesmo era de dirigir ou de ser a cobradora. A viagem sempre era muito longa, mesmo porque não conhecíamos nenhum lugar, a não ser a nossa linda Pereira Barreto, a Palestina e o Guarda  Mor,no interior de São Paulo. Esta última onde moramos até os seis anos de idade antes de irmos para a atual. Em Palestina fomos  uma vez, na boléia do caminhão que ia às compras uma vez por mês.. Uma viagem incrível.

Com o nosso ônibus, passávamos sobre lindas matas verdes, por pontes e rios caudalosos, um deles é o Rio Tietê, onde as águas são límpidas e ainda abastecia a cidade naquele tempo, e sentíamos o vento bater na nossa cara e desmanchar os nosso cabelos  encaracolados e bem cuidados pela mamãe, às vezes com duas tranças. Mas eu tinha muito medo de cair quando sobrevoávamos o rio...
Nunca chovia nesses dias. Os dias eram sempre lindos e ensolarados. Não tínhamos sequer o dever de abastecer o tanque de combustível.  O que tinha era suficiente para sonharmos. E íamos e vínhamos com muita frequência a muitos lugares dos quais só  ouvíamos falar no rádio, porque televisão não havia naquele tempo lá. Mas todos eles eram lindos.

Como éramos felizes!

Só retornávamos quando o sol estava se pondo e ouvíamos o chamado de mamãe para tomarmos banho, jantar e lavar a louça. Éramos incansáveis. Ainda nesse restinho de dia, já embocando na noite, inventávamos outras brincadeiras, como lenço atrás, passar anel, esconde- esconde... só não podia sujar as roupas e os pés. Tínhamos de estar limpos na hora de dormir para não sujar os lençóis branquinhos que eram quarados e fervidos até brilharem ao sol.
À noite, já deitadas, planejávamos a viagem do dia seguinte, sonhávamos acordadas e de cansaço dormíamos. Não tinha malas. Nenhum preparativo. Mas certamente iríamos desbravar estradas jamais trilhadas por nós, caminhos jamais percorridos na manhã seguinte. Ora de ônibus, ora de navio, ora de avião, porque o nosso ônibus era mutante e sempre voltávamos felizes com o seu desempenho e com a sensação de termos ido longe, muito longe. E a gente não se cansava de sonhar... sonhar.    A gente acreditava ter conhecido o mundo inteiro.

Um dia, meu pai construiu uma casa meio longe dalí  e nos mudamos para ela,  perdendo então o privilégio de ser vizinhos e, portanto o acesso ao quintal do seu João Galhardo. Mas ele ficou lá à espera dos novos vizinhos para fazer-lhe companhia nas horas de solidão. Que saudade de você, “nosso” ônibus companheiro das tardes quentes e alegres de Pereira Barreto.